A bela e a fera

A bela e a fera
arte de Mateus Rios, para adaptação realizada por Susana Ventura

quarta-feira, 4 de novembro de 2015

Morrendo em silêncio, mas não tanto

‘Nasci para ser quieta, mas no meio do caminho alguma coisa deu errado. Muito errado.’ Quem me conhece com certeza já me ouviu dizer isso mais de uma vez. Professora e pesquisadora, fui obrigada a ser menos quieta do que desejaria. Lá pelas tantas, desejando ser somente aquilo que já era mesmo – professora e pesquisadora -, acabei por entrar no mundo editorial de maneira um tanto casual. Passaram-se alguns anos e eis-me aqui, autora de cerca de uma dúzia de livros, a maioria destinada às crianças e aos jovens, e neste momento estou, com todo um setor, morrendo em silêncio. Mas, fiel às palavras com as quais iniciei esta crônica, acho que é chegada a hora de falar um pouco a respeito: as pequenas editoras - que publicam os meus livros - estão morrendo, desempregando pessoas, desmontando projetos editoriais de décadas. E isto está determinando tanto o fim desta parte importante da minha vida quanto atingindo um sem número de pessoas. Na outra ponta desta cadeia produtiva, ou seja lá como decidam chamar isso tecnicamente, há crianças e jovens, e eles não estão recebendo livros de literatura. Em 2015 eles não receberam e não receberão livros de literatura. Porque a quase totalidade dos programas que entregam livros de literatura para bibliotecas escolares estão paralisados ou foram cancelados. E não há sinais de que serão retomados. Então eu preciso escrever algo a respeito: porque a leitura literária é vida. Para todos. Não foi para a minha geração, mas era uma realidade no país há pelo menos duas décadas. E atingia os alunos de escola pública, como deveria ser. Porque a leitura literária abre possibilidades incomensuráveis. Aí está um dos problemas, a palavra linda que é ‘incomensurável’: aquilo que não pode ser medido. Eu não consigo medir o benefício que a leitura literária traz pelos sistemas de medição mais comuns. Mas eu preciso falar sobre isso, porque é uma certeza que eu tenho (e eu tenho poucas). Há um ensaio que anda há muito tempo comigo. Ele se chama ‘O direito à literatura’ e foi escrito pelo professor Antonio Candido. Entre muitas outras coisas, esse ensaio me ensinou que nós não temos o direito de julgar o que os outros precisam em termos de bens culturais; que nossa obrigação é oferecer o melhor, sempre, para que as pessoas façam suas próprias escolhas, levadas por seus anseios. Oferecer o melhor: é isso que não está mais sendo feito. Muito pelo contrário, não está se oferecendo nada. E o nada, quando se é criança ou jovem é muito ruim. É desastroso. Porque a gente precisa de muitas coisas que a literatura oferece: alimento, alento, refúgio, alicerce e força. Sugiro que se pare um pouco, para dizer aos outros e para ouvir dos outros - adultos e crianças que têm sido leitores - o que significa a leitura literária. Mas será que adianta? Adianta sim, porque tem outra coisa linda que eu aprendi com Antonio Candido: o tempo é o tecido de nossas vidas. E agora é tempo de falar sobre isso. Eu parei hoje para partilhar a minha indignação e a minha tristeza, porque um mundo vai desaparecer e se apagar para milhões de crianças e jovens que não vão nunca ter acesso às coisas maravilhosas que a leitura literária traz. E isso é desastroso. É uma vergonha. É um horror. Vamos falar a respeito ou vamos todos mesmo morrer em silêncio?

domingo, 1 de novembro de 2015

Um trabalho tão delicado

Escrever para crianças e jovens é um trabalho delicado. Eu tenho este ofício: escrevo para pessoas que não conheço e que estão no começo de suas vidas. Eu espero que essas vidas sejam tão longas e felizes quanto possível. Mas escrevo sabendo que serão vidas difíceis, porque toda vida humana é difícil. Preciso falar com essas pessoas agora, quando a trajetória delas apenas começa. Não me permito mentir, mas devo ser prudente: é preciso ser verdadeira, mas ser delicada e, acima de tudo, não retirar-lhes a esperança, nunca. No meu projeto de escrita entra também o humor, porque o humor alivia e ajuda. E, sobretudo, entra algo que considero essencial: a prática do respeito. Não sei quem me lerá e o que pode já ter acontecido naquela (ainda) curta existência. Embora a torcida seja para que a maior parte das experiências tenha sido boa até o momento em que abrir o meu livro, eu sei que pode não ter sido assim. Exerço, assim, o respeito, mas acredito no sonho e digo em quase todas as obras algo que posso escrever sem risco de faltar com a verdade: a vida é incrível e as possibilidades são imensas (qualquer que tenha sido o começo, qualquer que seja a circunstância: onde há vida há esperança, mistério e chances de mudança). Um trabalho tão delicado quanto necessário, e que faço em silêncio, torcendo para que o resultado possa alimentar a esperança e plantar uma semente que vire árvore, que dê em sombra e frutas para acolher e ajudar nos momentos difíceis. Ao meu lado está uma equipe de valentes, em várias casas editoriais e também em ateliês, livrarias de rua, escolas de vários portes, bibliotecas. Todos estamos lutando e conscientes da importância do nosso trabalho. A pergunta do dia é: até quando resistiremos diante de realidade tão dura?