A bela e a fera

A bela e a fera
arte de Mateus Rios, para adaptação realizada por Susana Ventura

domingo, 24 de janeiro de 2016

Realidades do interlúdio

Dia de atividades intensas, o táxi se aproxima do portão na hora marcada. Já fico animada. Aperto a mão do motorista, senhor Guimarães (meu afeto por Rosa me dá uma piscadinha), me apresento. Ah, uma hora e meia de viagem para estudar e rever os temas da fala! Abro o ‘Ficções do Interlúdio’ de Fernando Pessoa e... pigarro. Pigarro? Sim, pigarro, do senhor Guimarães, que me olha pelo retrovisor: - Perdão mas, posso fazer uma pergunta? Naturalmente que pode... - A senhora é artista? Não, não sou artista. - Ah, sabe? É que ‘eles’ não costumam buscar qualquer pessoa, normalmente eu levo artistas. Quando eu não reconheci a senhora resolvi perguntar. Não sou artista não. - Mas o que a senhora faz deve interessar, né? Táxi é caro, daqui para lá são dois municípios e ‘eles’ não mandam buscar qualquer uma. A senhora faz o que? Sou professora de literatura. - Ahhhhhh! Silêncio profundo, profundo, profundo. ‘Ficções do interlúdio’, vamos lá, ‘Ela canta, pobre ceifeira’...pigarro. - Posso fazer uma pergunta? Naturalmente que pode... - Literatura é o que mesmo? Sim, a vida real me chama. Vamos lá, fecho o livro. Começo pela canção que está tocando no rádio (sim, um daqueles flagelos diários que me batem no fundo do ouvido e me maltratam o cérebro e o coração). Lá vou eu pela história que está sendo contada pela letra e blá, blá, blá. Me entusiasmo, ele também parece entusiasmado e vamos falando, falando... Eu pergunto sobre a escola, o que ele viu na escola, quando foi... vamos em prosa, vamos em poesia... - Ah, isso é literatura? Que bonito... e a senhora fala tão bem, tão gostoso. Mas, posso fazer uma pergunta? Claro que sim (estudar ficou para uma próxima oportunidade, lógico, ali está a vida real à minha frente). - A senhora ganha p’rá falar disso ou trabalha em troca de transporte e comida? ... (No mundo perfeito eu morreria nesse instante, mas bem...)

Nenhum comentário:

Postar um comentário