A bela e a fera

A bela e a fera
arte de Mateus Rios, para adaptação realizada por Susana Ventura

quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

Bilhete - e ele está fazendo um ano...

Faz tempo. 1o. ano do primário. A barafunda de crianças divididas aleatoriamente formava blocos no enorme pátio, que, apesar de sua dimensão, não comportava todas. Filas se espalhavam pelos arredores, desciam rampas, subiam um morrinho de terra batida, desciam de novo pelo cimento, avançavam até o portão da escola. Finalmente entramos para as salas. Primeiros dias de fevereiro: exercícios motores numas apostilas. Aí veio o ‘remanejamento’, após análise do ‘nível’ dos alunos. Classes A, B, C, D, E... até F, G, dependendo da demanda do ano. A,B e C, as classes dos mais ‘espertinhos’, que até aquela fase eram os que tinham mão ‘molinha’ e ‘acertavam’ os tais exercícios motores com melhor exatidão. Entre 40 e 50 crianças em cada sala, uma professora apenas e o grande desafio: ensinar a ler e escrever até setembro, época de receber o Primeiro Livro. Para mim, 1o. ano D antes do remanejamento, depois, 1o. ano A, fila nova acompanhando a professora sorteada para cuidar de nós. Minha professora tinha um nome lindo e eu estava pronta para gostar dela. Acho. ******* Há dois ou três anos me perguntaram sobre ela: - Lembro-me da voz e dos dedos do pé, de unhas sempre pintadas. Ela mudava muito de cor. As unhas cortadas redondinhas... O segundo dedo era muito maior que o primeiro. Ela usava sandálias sempre, mesmo no inverno. E veja bem, que fazia frio lá. ? - Não sei do rosto, não olhava para ela. ? - Dois anos, primeiro e segundo ano. Depois fui para outra escola, do outro lado da linha do trem. ? - Lembro-me também das saias dela – estava sempre de saia - e dos pés. Tem um motivo sim. Acho que tem. ******** A,E,I,O,U, tudo bem. Passamos às sílabas. Ba, be, bi, bo, bu. Ao final de cada jornada com as letras, ir até a mesa da professora ler a página da cartilha correspondente e, se nos saíssemos bem, o grande prêmio, ansiado e maravilhoso: o carimbo no caderno. SIM, eu amava o carimbo – uma Abelha que se podia pintar! E, na volta para a carteira, um loooooongo tempo para pintar a tal abelha (claro, com quase cinquenta crianças para sabatinar, eu poderia ter me tornado Rembrandt se tivesse algum talento...). Hora deliciosa. A cada dia uma novidade para colorir: Abelha, Escola, Igreja, Óculos, Uva. Até que ele chegou: o Cachorro. Lição fácil e o carimbo do cachorro. Uma graça, com o rabo enrolado no ar. Vamos pintar o cachorro. Dia seguinte: lição do cachorro. Vamos pintar o cachorro. Posso fazer manchinhas. Outro dia: lição do cachorro. Listrado. Mais um dia: lição do cachorro. Verde. Dia subsequente: lição do cachorro. Vou rabiscar. Vou abreviar o sofrimento dos meus dois leitores – oi, vocês dois, tudo bem? – 20o. dia: lição do cachorro. Eu espiando o carimbo, já enjoada. Onde será que a professora guardava os outros carimbos? Espichava o olho pela mesa ao repetir novamente as palavras decoradas, já nem acompanhava o dedo que apontava para elas na folha da cartilha. Ah, a professora só trazia para a aula o carimbo do dia... E no dia seguinte e no outro ainda, novamente ‘dia de cachorro’. Ai, meu Deus! Mas havia alguém com mais problemas do que eu. Muitos mais, aliás. Ela. A pobre garotinha que não conseguia ‘aprender’ a lição do cachorro. Seu lugar era lá no fundo. Cabelinho bonito, castanho, liso, repartido ao meio, preso atrás num coque. O rostinho assustado. - CLAUDIOLINDAAAAAAAAAAAAAA! VENHA JÁ AQUI. A professora gritava. A manhã inteira – ou o que me parece hoje que fosse a manhã inteira - ela gritava com a garotinha. A garotinha que não aprendia a lição do cachorro. À minha volta a miudagem se mexia e falava: por causa dela, da Claudiolinda, a gente não passava da lição do cachorro. Cachorro todo dia. Culpa dela. Seis anos e meu senso de justiça apareceu: a culpa não era da Claudiolinda, era daquela agressora com os dedos do pé enormes. Falei um vez só, nem falei, cochichei. Ganhei um beliscão da parceira de carteira. A tortura diária continuou: - CLAUDIOLINDAAAAAAAAAA! A coisa deveria ser intolerável para mim, uma vez que reclamei para os adultos (os mesmos que já tinham me avisado que NUNCA me dariam razão se eu arrumasse QUALQUER problema na escola). Lembro-me do rostinho em pânico da menina a cada vez que era gritado o seu nome. Não durou muitas semanas mais aquele suplício. Claudiolinda foi ‘remanejada’ sozinha para outra sala, passamos para a lição do Dado. A partir dali, a cartilha voou e os carimbos se multiplicaram. Em poucos dias a cota de gritos destinada primordialmente para a Claudiolinda foi redistribuída pelos demais alunos. Para mim sobrou uma fatia pequena: - SUSANAAAAAA, VOCÊ ESTÁ NO MUNDO DA LUUUUUUUA? VIVE SEMPRE NO MUNDO DA LUUUUUUUUUUA. NÃO É POSSÍVEL. SUSANAAAAAA! Dois anos inteiros. Inesperadamente, lá vinha. Assustava um pouco. Incomodava um pouco. Não muito. *************** Por anos, após ganhar alguma autonomia, eu perguntei pela Claudiolinda. Procurei, mas nunca consegui encontrá-la. Mudamos de cidade, inúmeras vezes mudei de escola. Continuei me mudando depois de adulta. Quando tive acesso à internet, sem saber ao certo como funcionava, buscar por informações de Claudiolinda foi das primeiras coisas que eu fiz. Até hoje não consegui encontrá-la, embora continue procurando. Então deixo aqui, no final desta crônica, um bilhete. Quem sabe um dia ele alcance a destinatária? ‘Claudiolinda, eu ainda não te encontrei. E em de 2015 faz 40 anos que a gente entrou no primeiro ano. Queria só dizer uma coisa: no primeiro dia em que aquela professora gritou com você, eu abaixei os olhos e prometi que eu não olhava mais na cara daquela agressora de crianças. E não olhei. Foi só o que eu achei que dava para fazer. Besta, né? Mas foi a única coisa que eu consegui fazer. Sempre que eu penso em você eu choro por aqueles maus tratos. Mas há, por trás das lágrimas, algo que me diz que, se eu te encontrasse, você poderia bem dar uma risada e dizer: ‘Que boba, você. Nem lembro do primeiro ano! Eu, hein?’. Espero muito - você nem calcula o quanto - que possa ser mesmo assim. Que aqueles berros não tenham feito mal a você e que a sua vida tenha sido linda e especial. Eu acabei ficando pela escola toda a minha vida e tenho sido feliz. E eu fiquei forte, hoje brigo de verdade com quem grita com crianças e não trata as pessoas do jeito que elas merecem: bem, muito bem. Pensando hoje na rudeza que era o cotidiano daquelas professoras, eu entendo a dificuldade diária: muitas crianças, nenhuma ajuda, tarefa enorme, salário baixo, vida dura. Entendo que o trabalho era muito difícil e manter a calma talvez fosse pedir demais. Minha cabeça entende, mas meu coração, esse, não entende nada e continua a querer saber se está tudo bem com você. Receba um abraço da sua colega de classe – aquela bem pequena, quieta, de cabelo enroladinho preso, de óculos, bota ortopédica preta, sentada na frente, dividindo carteira com a Márcia, a loirinha falante, Susana’

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